sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

ÚLTIMO ACTO, de Anna Langhoff, foi representado pela primeira vez no Teatro Gorki, dirigido pela autora. Trata-se de uma peça que decorre durante um ensaio, próximo da estreia, a partir do momento em que o encenador é “visitado” pelo escritor/dramaturgo. Este deseja que aquele escolha dirigir um texto seu. Um retrato cruel e cómico sobre as relações de poder no teatro, um olhar descarnado sobre as práticas e a cultura teatrais e o entendimento ou desconhecimento que delas fazemos.
ÚLTIMO ACTO é completado por A Arte do Futuro, de Alexej Schipenko, um texto onde também se fala de arte, de deus, da morte, do mundo, dos nossos desejos e medos.


ÚLTIMO ACTO
de Rui Madeira, Anna Langhoff e Alexej Schipenko
com Solange Sá, Waldemar de Sousa, Rogério Boane, André Laires, Frederico Bustorff Madeira e Vicente Magalhães Assistência de Carlos Feio e André Laires Tradução de Regina Guimarães e Helena Guimarães Desenho de Luz de Fred Rompante Trabalhos de Vídeo de Frederico Bustorff Madeira e de som de Luís Lopes Operação de luz de Vicente Magalhães Montagem de Fernando Gomes e João Chelo Criação gráfica de Carlos Sampaio Fotografia de Paulo Nogueira
M/16
Encenador: Como tudo isto me mete nojo!
                 … é insuportável. In-su-por-tá-vel! Mas como é que um actor nem sequer é capaz de dizer a um outro – como eu diria a um cão – de uma forma simples: amo-te. Ponto final. Parágrafo. Porque não será isto possível?
Acho que sim. Acho que o teatro só foi inventado por causa do pavor face à intimidade. Porque não é permitido calar ou exprimir alguma coisa, assim, de forma simples, em voz baixa e completamente normal. Ninguém se atreve. Todos têm medo de se assumir realmente. É por isso que berram e palram. Em coro. Pensar é que não, pois não?
                                                                  extrato de Último Acto de Anna Langhoff
A arte do futuro é a arte futura de evitar quer o futuro quer a arte. É isso que te ocupa, que te atrai para os encantos do cadafalso, na lonjura. A falar verdade, tu já não queres conhecer nenhuma arte. Tu renega-la, pura e simplesmente, e apenas sonhas, pessoalmente, com a forma simples de lhe escapar, razão pela qual atribuis um destino ao futuro que corresponde à tua imaginação…
…O medo da morte coloca-nos no Sofá Hiperoptimizado e recomenda-nos tecnologias decorativas, melhor dizendo, sugere-nos que não perturbemos a arte. Por outras palavras, aconselha-nos a “arte do leito da morte”. Pois o ser humano, quando morto, permanece silencioso e calmo e não incomoda…
… A arte do futuro é a “arte da subsistência” sujeita às condições de um mercado vencedor sobre todas as formas humanas de entendimento ainda existentes. Essa arte, uma estratégia para receber uma remuneração, já não apresenta, por isso, qualquer preocupação “não terrena”…
                                          extrato de A Arte do Futuro de Alexej Schipenko

Último Acto, um espectáculo ao contrário

Inicialmente criado em 2006, com encenação de Anna Langhoff, decidimos repegar agora nestes textos e ”reconstruir um outro espectáculo” a partir das ruínas daquele outro. Necessariamente diferente, porque assenta noutras “linhas de partida”, e noutro “momento político”. O que também condicionou esta escolha. Mantemos e aprofundamos a “discussão” por dentro do teatro, da estrutura teatral, nas suas relações internas de poder e na sua constante busca de novos sinais, de outras imagéticas, de novas formas… nessa incessante caminhada da criação artística, para o futuro, para a Arte do Futuro.

Continuamos a querer implicar o público nisto. Exigindo dele. Colocando-o como actor da história, como actor cidadão comprometido com o mundo. Não tem safa. Se morrermos nós (os artistas), vocês (o público) também não se salvam. O Mundo morrerá mais um bocado. O Caos instalar-se-á a partir da Morte da Arte. Por mais ministros e directores-gerais que o não entendam.

Voltamos a mexer nestas ruínas, para reganharmos forças para o Combate que se aproxima. Por dentro e por fora do Teatro. Com este trabalho, é melhor chamar-lhe assim, damos continuidade ao que começamos a desenvolver com Concerto “à la carte”, de Franz Xaver Kroetz. O não teatro. A exploração da noção de tempo teatral. A aproximação à vida e ao confronto com o público numa perspectiva de o desinstalar da comodidade com que se senta nestas novas plateias…
Se a Vida está difícil a vida teatral está cada vez mais dramática.
E todos nós (actores e públicos) teremos de perceber o que nos está a acontecer, sob pena de sermos espectadores da nossa própria morte.

Rui Madeira